Carta das Editoras

Autores

  • Amanda Danelli Costa Professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IGEOG-UERJ)
  • Viviane da Silva Araújo Professora adjunta vinculada ao Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Resumo

Carta das Editoras

Entendemos que os homens e suas subjetividades, os grupos sociais e suas demandas contribuem para a formação e transformação das cidades no mundo, tal como sugere Richard Sennett (1997). Por outro lado, são também as cidades e as suas especificidades, as culturas forjadas nas ruas, os modos de (con)viver que formam e transformam estes mesmos homens e grupos sociais. Assim, as cidades variam de acordo com os homens que a habitam, bem como os homens também variam de acordo com as cidades onde vivem, por onde circulam. Justamente por essas razões, as cidades são entes vivos, extremamente dinâmicos porque estão em permanente transformação, respondendo aos estí­mulos e talhando o caráter das pessoas.

Se tomarmos como foco principal as cidades latino-americanas, podemos acrescentar ainda, como alerta Adrián Gorelik (2003), que estas correspondem ao espaço da criação real e imaginária da modernidade em nosso continente, locais inventados para servirem como catalisadores de um destino moderno, ocidental e capitalista, pretensamente universal, advertindo que a intencionalidade da invenção da cidade latino-americana, e da própria América Latina, é uma marca de nossa tradição intelectual, que tratou o continente como um projeto, como algo ainda a ser produzido, a partir dos anseios de intelectuais e grupos dirigentes. Aqui, a ideia de Novo Mundo, de um mundo recentemente incorporado à história do Ocidente e, portanto, condenado ao moderno, teria motivado a noção de que construir materialmente cidades modernas corresponderia a construí­-las também idealmente. Desse modo, ainda que a cidade latino-americana não se caracterize como inteiramente singular, diferente ou oposta às cidades europeias que muitas vezes lhe serviram como referência, é interessante observar que na América Latina a cidade parte do cruzamento entre a modernidade e o moderno particularmente a partir de duas perspectivas: através da necessidade de dominar a natureza virgem, bárbara, atrasada fazendo valer os esforços e os sentidos civilizatórios; mas também através do Estado como principal ator capaz de implementar as reformas modernizadoras, que atualizariam a nossa experiência da modernidade.

Sem as cidades não existiriam intelectuais, diria Angel Rama (2015), e porque ele é produto dela, a cidade se faz presente em toda a dinâmica intelectual. Por isso sublinhamos que não olhamos para a cidade apenas como objeto de investigação, mas de algum modo a cidade conforma uma certa perspectiva que orienta a nossa mirada para os nossos diversos objetos de interesse. O ensaí­sta uruguaio demonstra, então, como as cidades são um locus privilegiado para o exercí­cio necessário aos intelectuais de, narrativamente – através da letra, criar o mundo. E esta criação do mundo passa, ou se inicia, pela invenção das cidades. Na América Latina, em especial, as cidades foram inventadas antes mesmo da sua existência material. Aliás, é importante sublinhar, indo ao encontro das ponderações de Gorelik, que as ideias circulam em uma velocidade muito maior do que as condições materiais dos processos de modernização, o que nos ajuda a entender esse caráter ontológico das cidades latino-americanas: o da permanente tensão entre a cidade real x cidade imaginada.

Não à toa, o subtí­tulo da principal obra de José Luí­s Romero (2009) sobre a América Latina é: as cidades e as ideias. Ali, mais uma vez a cidade aparece como o lugar que experimenta particularmente a tensão entre vontade projetiva e as condições reais de existência. E, no limite, não importa quanto o projeto não se realize. A observação do que se põe efetivamente em prática e aquilo que se elabora prospectivamente é fundamental para refazer o percurso intelectual de vários agentes na cidade e, ainda, observar como as materialidades da cidade dialogam com as realidades e suas representações. Não podemos perder de vista que o continente americano nasce moderno e por isso essa atividade reflexiva, tão caracterí­stica da modernidade e da intelectualidade, encontra na cidade imaginada latino-americana o lugar a partir do qual se pensou e se delimitou o próprio continente. Aqui, a cidade é tanto obra da modernidade como é o lugar a partir do qual se reflete sobre a modernidade.

Porque são carne e pedra, e simultaneamente reais e imaginárias, percebemos as cidades na relação com os homens e grupos sociais que ali estão interpretando, traduzindo, desenhando, fotografando, pintando, gravando, cantando, flanando, desbravando, conhecendo, experimentando a cidade, tendo-a como objeto primeiro de interesse ou como palco privilegiado para as mais diferentes reflexões. Assim, é muito vasta a variedade de pesquisas que se integraram ao presente dossiê, que resultou, principalmente, do simpósio "Imagens e representações das cidades, intelectuais e cultura urbana" , realizado no Congreso Internacional Nuevos Horizontes de Iberoamerica, em Mendoza, no mês de novembro de 2017. Naquela ocasião, buscamos valorizar ainda os estudos comparativos que abarcassem o universo iberoamericano ou suas partes e também as pesquisas que fundamentassem as abordagens a partir de uma produção do conhecimento iberoamericana. Na medida em que observamos as cidades e as culturas urbanas em perspectiva histórica e de modo multidisciplinar, abrimos espaço para refletir acerca das complexidades do entrecruzamento entre cidade, cultura e intelectuais a partir do encontro entre diferentes áreas do conhecimento como a Sociologia e a Antropologia, a Fotografia e o Cinema, as Letras e a Crí­tica Literária, a Arquitetura e o Urbanismo, as Ciências do Lazer e o Turismo, o Patrimônio Histórico e Cultural, a Música, o Teatro e as Belas-Artes, o que se traduziu na multiplicidade de abordagens que se encontram nos artigos presentes neste dossiê. As variadas fontes culturais, derivadas de inúmeras ferramentas assentadas nessa modernidade latino-americana, nos ajudam a observar como os intelectuais e variados agentes interpretaram a realidade, imaginando alternativas, buscando incorporá-las ao espí­rito e à carne da cidade.

No primeiro artigo do dossiê, El surgimento de uma estética urbana en la poesia hispano-americana de vanguardia, Claudia Miriam K. Rotenberg aborda como as transformações urbanas da Cidade do México ao longo do século XX, especialmente nas suas primeiras décadas, foram registradas por seus poetas, que em muitas ocasiões funcionaram como testemunhas e intérpretes das vertiginosas mudanças em seu espaço urbano. Assim, a autora se propõe refazer o percurso intelectual sobre a cidade e sua cultura urbana moderna a partir de alguns poetas que observaram especialmente a experiência da modernidade, bem como os seus limites e idiossincrasias. Para tanto, analisaram-se algumas das técnicas que utilizadas por esses intelectuais, entre as quais se percebe radicalmente a influencia de um diálogo intertextual com outras tradições poéticas, especialmente a europeia, assim como se notam os efeitos que as especificidades da própria história da capital mexicana implicam para as recriações que se materializam através das múltiplas vozes desses modernos artistas.

No artigo Cidade, modernidade e imaginação: as metrópoles do século XXI na imprensa ilustrada carioca e bonaerense do século XX, Viviane Araujo analisa uma série de crônicas, desenhos e fotomontagens veiculadas pela imprensa ilustrada no Rio de Janeiro e em Buenos Aires durante as duas primeiras décadas do século XX que tiveram como tema central o futuro destas cidades. Diferente dos projetos urbaní­sticos produzidos por agentes do Estado ou de planos arquitetônicos empresariais, que tinham propósitos materiais práticos e estavam preocupados com a sua viabilidade, as imagens e textos analisados pela autora revelam uma percepção muito mais livre acerca dos anseios por progresso e modernização que a chegada do século XX despertava naqueles que viviam este tempo de intensas transformações em ambas as cidades, transformações estas que estimularam a imaginação sobre a proporção e os impactos das mudanças que ocorreriam um século mais adiante.

Em Enseñanza artí­stica de grado universitario: prácticas y metodologí­as desde la disciplina de la Escultura, Vivas Ziarrusta Isusko e Lekerikabeaskoa Gaztañaga Amaia identificam seu objeto de estudo articulado aos acordos legislativos e administrativos que orientaram os novos planos de ensino propostos e discutidos no âmbito da Área Europeia de Ensino Superior (EEES), assim como a sua subsequente assimilação internacional. O principal objetivo do estudo que ora se apresenta é o produzir um enquadramento de um debate atravessado pelo í­mpeto de mudança e reinterpretação cujas chaves se encontram para além dos modelos educacionais. Os condicionantes que atuam sobre tal í­mpeto direcionam um modo de compreensão da aprendizagem ao longo da vida, com o fito de educar gerações marcadas por um trabalho altamente flexí­vel e por exigências profissionais caracterí­sticas das sociedades pós-crise. Ao assumirem como ponto de partida a prática da arte e a experiência no ensino superior no campo das artes plásticas, especificamente no tocante escultura, se observa uma especial atenção aos canais de transmissão de arte e das possibilidades daí­ decorrentes.

No artigo El patrimonio en el ordenamiento territorial y la mirada desde el tejido social, Jorge Alberto Kulemeyer observa a questão do patrimônio cultural articulada ao tema do ordenamento territorial e às tensões caracterí­sticas à sociedade que ocupa aquele determinado território e se identifica ou a quem se refere aquele patrimônio, tangí­vel ou intangí­vel, em especí­fico. Seu estudo produz uma reflexão sobre os embates que se locam em torno de um bem cultural que frequentemente já existia, com funções e usos, em um determinado ambiente antes mesmo dos recentes ordenamentos do território e das visões prospectivas de futuro. Justamente porque tem uma configuração material e imóvel, a qual se agregaram distintos valores reconhecidos socialmente, faz-se necessário que toda ação de ordenamento do território tome os bens culturais como ponto de partida para a sua elaboração e execução.

Em #Sou+carioca: um estudo de caso acerca do consumo de tours organizados pelos moradores do Rio de Janeiro Caroline Bottino e Amanda Costa exploram a questão da atividade turí­stica perguntando-se sobre a possibilidade de sermos turistas em nossas próprias cidades. O turismo é uma dessas atividades que tanto se transforma na medida em que as cidades mudam, como ele também pode ser um dos elementos que provocam mudanças na cidade, de modo que cidade e turismo se afetam mutuamente. De acordo com a Organização Mundial do Turismo são consideradas turistas as pessoas que se deslocam para uma cidade diferente daquela onde reside, pernoitando ao menos uma noite no destino da viagem. Essa definição é importante, no âmbito de um órgão dessa magnitude, justamente para que seja possí­vel quantificar a atividade turí­stica no mundo, observando especialmente os fluxos de pessoas que usam os transportes turí­sticos, os meios de hospedagem e a circulação de turistas nas cidades que são destinos turí­sticos mundo afora. Se tomarmos essa definição como a única possí­vel, saberemos que a resposta para a pergunta que orienta a produção desse estudo de caso será negativo. No entanto, tem-se observado o crescimento de tours guiados pela cidade do Rio de Janeiro que tem como clientes os próprios moradores da cidade. E é a partir dessa chave de inflexão que o artigo aponta para a necessidade de que o campo do turismo, como área de produção do conhecimento, amplie e ressignifique algumas das suas ferramentas de interpretação da atividade turí­stica.

No artigo Experiência na cidade e leitura da história: produção e circulação da história em Manguinhos, uma favela carioca, o autor Daniel Pinha Silva parte da análise de um caso especí­fico: o momento de preparo e a circulação da exposição itinerante "Manguinhos: território em transe" , responsável por contar a história da ocupação e das disputas que aconteceram naquela favela, situada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo central do estudo se assenta na discussão sobre os desafios que se impõem à produção e difusão do conhecimento histórico através de narrativas que tematizem a ação de sujeitos que experimentam a vida na cidade a partir da condição especí­fica de serem moradores de favelas.

Em O corpo carioca no imaginário turí­stico do Rio de Janeiro, Isabella Perrotta se pergunta como o corpo feminino, primeiramente, e agora também o corpo masculino carioca, tornaram-se elementos representativos para a imagem turí­stica da cidade do Rio de Janeiro desde há algumas décadas. Inicialmente, a valorização dos corpos estaria atrelada a outras representações que, de diferentes formas, contribuí­ram para a exposição fí­sica dos cariocas, como a praia e o carnaval. Ambos não representam a natureza turí­stica da cidade, mas uma construção que precisa ser observada a partir de uma perspectiva histórica: apenas a partir dos anos 1930 praia e carnaval se tornam atrativos turí­sticos importantes do então Distrito Federal. Se esses estigmas parecem terem sido atribuí­dos de fora para dentro, a partir das experiências e expectativas dos turistas estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro, este artigo nos ajuda a refletir sobre como as polí­ticas de turismo, especialmente as de propaganda, contribuí­ram fortemente para a construção e fixação dessa imagem paradisí­aca da cidade atrelada aos corpos nus dos cariocas.

Editoras convidadas

Profª. Drª. Amanda Danelli Costa

Profª. Drª. Viviane da Silva Araújo

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Biografia do Autor

Amanda Danelli Costa, Professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IGEOG-UERJ)

Graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004), mestrado (2007) e doutorado (2011) em História Social da Cultura pela Pontifí­cia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Viviane da Silva Araújo, Professora adjunta vinculada ao Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Doutora em História pelo programa de pós-graduação em História Social da Cultura da Pontifí­cia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Mestre pelo mesmo programa e graduada em História pela UERJ.

Referências

GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Universitas Humaní­stica, nº56, junio-2003, pp. 11-27.

________________. Historia de la ciudad e historia intelectual. Prismas – Revista de Historia Intelectual, nº3, 1999, pp. 209-223.

RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Ed. Boitempo, 2015.

ROMERO, José Luí­s. América Latina: as cidades e as idéias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.

SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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Publicado

2018-06-07

Edição

Seção

Editorial